5/12/2018

O último Banquete de Jorge


O miserável agradeceu a marmita:
-Muito Obrigado dona Lourdes. Se precisar de algum trabalho de casa como carregar caixas ou cortar a grama, eu faço na maior boa vontade para a senhora.
-Não há de quê, filho. Já estive em situação parecida com a sua. É bem ruim precisar pedir por coisas tão básicas como comida.
Jorge, o miserável, andou por meia hora até o parque, onde entrou no banheiro público e cagou.
Terminado o serviço, usou  a pia. Enquanto jogava água na cara para umedecer a barba e se refrescar, pensava na situação anterior.
“Dona Lourdes já foi uma miserável”
“isso explica aquelas cicatrizes no rosto, não?”, ”marcas de um estupro, algo assim”
“E ela tem toda aquela comida guardada, só para ela”
“Quantas pessoas se satisfariam com aquilo tudo?”
No Boca-a-boca a palavra se espalhou: Um banquete gratuito no sábado, na esquina do parque Água Azul.
Uma mesa enorme, tirada da casa de Dona Lourdes, estava estendida com toalha e comida, desde a madrugada. Às seis da manhã começaram a chegar os primeiros pratos. Cuscuz, arroz, ovos e enlatados em um pote volumoso. Os miseráveis se serviam.
Sobrou comida para os que chegaram ás 9 e comeram coisa fria.
Dois homens gordos e barbudos chegaram em um sedã e colocaram pães (amanhecidos) na mesa, junto com a propaganda de uma padaria local.

3/09/2018

Ataíde


-Ou. P...p...para onde vai esse ônibus?
-Esse aqui vai lá pro terminal Nova Bahia
-Vixi. Não sei não, acho que peguei o ônibus errado. O que é isso que você está lendo?
-Edgar Allan poe. conhece?
-Não conheço não. Essas letrinhas aí eu nem enxergo. Minha ex mulher que lia, um livro desses daí ela lia num supetão. Meus filho lia também. Mas eu não falo com eles faz tempo. Canto tempo você leva pra ler um livro desses?
-Eu vou lendo devagarinho, um pouco por dia. Não para pra contar não
-Hã?
-Leio um pouco por dia, nunca contei.
-Ah... Eu nem sei pra onde esse ônibus vai.
-Pra onde você quer ir?
-O quê? Ih rapá, pra onde eu quero ir? Eu queria minha mãe me abraçando.
-Ah.
-Vou lá pra casa da minha mãe mas esse ônibus tá indo pro lugar errado. Leia aí. pode ler
...

1/25/2018

Homem de Ferro

-A partir de agora você vai sozinho – Disse a mãe com o coração apertado. – Preciso Voltar ao trabalho.
-Mas mãe, esse...
-Não. Você está grandinho demais para isso. Você consegue chegar em casa sozinho. Só pegue o ônibus vinte e seis e desça na rua atrás da rua de casa.
A mãe diz isso contra a própria vontade. O que ela realmente quer é levar o filho para a casa segurando-o pela mão, deixa-lo no quarto assistindo á televisão e colocar um cadeado no portão quando voltar para o trabalho. Mas ela também sabe que não dá tempo, se fizer isso, chegará atrasada e será demitida. Além do mais ela sabe que o filho Cauã agora é um homem crescido e apesar de todas as deficiências mentais, ela pode morrer a qualquer momento e quando isso acontecer o filho tem que saber se virar sozinho.
Quando ela beija a testa do filho e dá as costas, sabe que não pode olhar pra trás. Ele vai esperar que ela suma, virando a esquina e só então vai voltar para casa.
“Se eu olhar para trás, vou querer voltar. Na verdade, se eu olhar para trás eu vou voltar”
Cauã tira do bolso um boneco do homem de ferro com uns quinze centímetros de altura. Ele aperta com força a cabeça do boneco e quanto mais longe a mãe está mais forte ele aperta o boneco.
Quando a mãe some do campo de visão, ele aperta um botão nas costas do brinquedo.
“Eu sou o homem de ferro” – Diz a voz robotizada, produzida por alto-falantes de baixa qualidade. Apesar da baixa qualidade o boneco é bonito.
Enquanto anda para o ponto de ônibus, Cauã gosta de imaginar que é o homem de ferro e na verdade está voando para a casa. Ou ainda melhor, está voando para Nova York.
Enquanto se aproxima do ponto de ônibus, Cauã diminui o passo. Há um velho de bigode esperando o ônibus. Cauã  não gosta de ficar sozinho com estranhos. Agora ele anda tão lentamente, que parece um bicho preguiça obeso. Se continuasse naquela velocidade, suas unhas do pé cresceriam e chegariam ao ponto de ônibus antes dele.
Finalmente, o garoto chega ao banco, e despeja seus cento e doze quilos no metal, que reclama. Cauã só espera que o velho não queira conversar porque se não ele vai ter que falar, e quando fala, se sente julgado. Principalmente com estranhos.
-Belo bonequinho, hã!
Cauã não percebeu que o velho falava do homem de ferro na mão dele.
-Quem é esse daí? O super socialista? Pelas cores do uniforme deve ser.
Cauã olha para o homem com o canto do olho.
-É para um filho? Você tem filhos? Ou pode ser para um sobrinho também. Eu comprava brinquedos para meus sobrinhos antes dos meus filhos nascerem. Agora todos os três são homens formados.
-É o homem de ferro – A voz de Cauã parece um sussurro fino. Ele fala como uma garotinha gripada.
-Aham. Acho que é desse dai que meus netos gostam. Você tem filhos?
-Não. O boneco é meu.
O velho parece espantado. É hilária e trágica a cena diante de seu bigode. Um jovem, provavelmente com mais de vinte anos, a barba por fazer, gordo como um elefante velho e que tem bonequinhos.
-E você brinca com esse, homem de ferro?
-Ás vezes. – A voz de Cauã soa cada vez mais leve, abaixando cada vez mais a cabeça.
-E não tem vergonha? Um homem do seu tamanho, brincando de bonequinhos. Você devia é arranjar um emprego. Umas bucetas também.
Cauã arregala os olhos. As únicas vezes que ouviu aquela palavra, bem, na verdade ele não se recorda. Mas sabe que são palavrões.
-Eu fiz minha carteira de trabalho hoje.
-Isso é bom. No que você vai trabalhar?
-Eu vou ser o homem de ferro.
O velho dá uma gargalhada que pareceria contagiosa, se não fosse cruel.
-E eu vou ser o Robocop – O velho continuou a rir. – Essa foi boa.
-Legal – Respondeu Cauã. – Mas eu...
O velho o interrompeu.
-Isso é uma perdição. Um homem do seu tamanho, tanto em idade quanto em largura -Aqui o velho abre um sorriso bruto-  e querendo ser uma criança. Se fosse na minha época você já estaria trabalhando em um canavial. Levado umas boas surras, seria um homem de verdade.
-Mas eu sou um homem, o homem de ferro.
-Homens precisam de trabalho, esportes, cerveja e buceta. Carros também, para quem pode.
O ônibus 26 passa e para o azar de Cauã, o velho também entra nele.
-Sabe, acho que o grande problema é que os garotos da sua idade  tem computadores. Acessam a pornografia o dia inteiro. Na minha época era preciso gastar dinheiro e tempo para conseguir ver umas tetinhas. Vocês só vivem de saco vazio, e por isso tem menos testosterona que as mulheres. Não é á toa que elas estão preferindo os coroas. – E deu uma risada alta.
Uma passageira do ônibus parecia incomodada com o monólogo do velho. Cauã está quieto, e continua assim, porque sabe que ele mesmo as vezes massageia o pipi. Também sabe que isso é errado, porque a mãe disse para ele não fazer mais isso. O padre também disse para Cauã não se masturbar.
“Mas é tão bom”
De qualquer forma, o garoto não tem muito discernimento sobre suas ações. Não prestou muita atenção ao que o velho falava sobre sexo e álcool. Algo sobre os homens que não sabem fazer o reboco da casa serem verdadeiras bichas.
“Talvez eu seja uma verdadeira bicha. Não sei fazer reboco”
Outra coisa que Cauã não sabe, é o significado de verdadeiras bichas.
-Vamos, fale alguma coisa! O gato comeu sua língua?
-Eu sou uma verdadeira bicha.
O velho irritado, olha com pavor, nojo e ódio ao mesmo tempo para o garoto e começa a falar bem alto:
-Cala a boca moleque. Você não sabe o que fala. Você é um gordão autista. O que você merece é levar uma surra, viadinho.
Cauã não sabe o que é bicha, mas sabe o que é viadinho. Ele já foi chamado de gordo autista antes e isso machuca bastante o coração engordurado que ele ás vezes sente em algum lugar no meio de toda a banha.
-Você vai chorar? O bebezinho está chorando gente. O viadinho chora com um bonequinho. Você enfia esse bonequinho no cu de vez em quando?
Algumas lágrimas escorrem pelas bochechas inchadas do garoto. Por sorte, está perto de casa e vai descer do ônibus.
É uma pena que o velho o segue.
-Está bem. Eu estou morrendo e ainda não fiz minha boa ação do dia, preciso muito ir pro céu, encontrar minha falecida esposa. Vamos, vou te pagar uma cerveja.
-Não.
-Não tenha medo. Eu pago, ali no bar do Raimundo. Ou você quer continuar sendo um gordo viadinho?
Cauã não quer continuar sendo um gordo viadinho. Ele se lembra de um comercial na TV. Um homem estava triste no escritório. Ele gira na cadeira e surge um bar. Ele pega uma lata de cerveja e toma um gole. Imediatamente ele fica feliz e surgem outras pessoas contentes.
Talvez se tomasse uma cerveja, ele seria bem feliz e não mais um gordo viadinho.
No bar, o garoto tenta se sentar numa cadeira de plástico.
-Não sente aí -Grita o velho – Você vai quebrar a cadeira. – Vou trazer algo mais resistente para você.
Humilhado, o garoto está novamente de cabeça baixa, e novas lágrimas escorrem pelo rosto.
O velho tenta não dizer nada dessa vez, mas não se aguenta e resmunga “bicha chorona” enquanto sai. Cauã ouviu e agora está ainda mais triste.
-Aqui está, te trouxe um banco de metal.
O velho coloca duas cervejas sobre a mesa.
-Tome.
-Cauã ainda está travado, mas lentamente cria coragem e segura a garrafa.
“Tem gosto de xixi” ele pensa. Depois de três goles ele ainda não está feliz como no comercial. As pessoas em volta dele não parecem felizes. São velhos barrigudos de braços finos. Alguns gritam no jogo de truco, outros dormem, mas nenhum parece feliz como no comercial.
Talvez precisa beber mais um pouco. Ou talvez precisa de uma gravata para que a cerveja me deixe feliz.
Como não tem uma gravata, Cauã bebe mais enquanto o velho discursa sobre como em sua época os homens gostavam de boxe. “Nós brigávamos no bar, só pela diversão. Nós corríamos de carro e mesmo quando cansado, eu chegava em casa e comia minha esposa. Ás vezes eu precisava aguentar as duas amantes e ela no mesmo dia, meu pau quase explodia, e no outro dia eu dizia estar com dor de cabeça. Mas esses dias eram os melhores.”
-Mas os homens da sua geração são iguais a você. Gordos, idiotas e só gostam de coisa de criança.
Cauã, agora bêbado, volta a chorar. Já foi chamado de idiota antes e sabe que isso é ruim
-Olhem para mim eu sou um homem de ferro. – Agora o velho não fala alto, mas grita.
-Aposto que o seu pinto também não cresceu, como você. Aliás, você ainda enxerga ele? – E o velho cai na gargalhada.
“O que Tony Stark faria?”. Cauã não aguenta mais. Não é só tristeza e vontade de sair correndo para longe dali. Cauã quer o colo da mãe. Mas ela está longe.
E a natureza tem uma regra que rege todos os seres vivos.  Se você não pode correr, finja de morto ou ataque.
“Tony Stark vestiria a armadura e mataria o vilão” "Uma luta, sim, como os homens de antigamente. Não vou mais ser uma bicha chorona. Vou ser o Tony Stark"
Mesmo que a gordura debilite seus movimentos, Cauã ainda é, pelo menos, quarenta anos mais jovem que o velho bigodudo que o provocara. Um soco, depois um chute. Depois Cauã bate com a garrafa na cabeça do velho.
Alguém grita “OU” lá do fundo do bar, mas Cauã não ouve. O velho também não.
Com dificuldades para se movimentar, o velho cospe o último dente que sobrou em sua boca, no meio de uma poça de sangue.
-Seu viadinho! – É a última frase do homem.
Cauã ainda está triste e humilhado.
A mãe de Cauã também vai ficar triste e humilhada quando descobrir o que aconteceu.
Cauã vai ser muito mais humilhado na cadeia, mas ninguém sabe disso ainda. E o homem de ferro não virá para salvá-lo.



10/22/2017

Paixão é sinõnimo de Lealdade

Eu pensava que a lealdade e a fidelidade eram as mais importantes qualidades que uma pessoa poderia ter em qualquer relação, seja de amizade, trabalho ou casamento.  Cheguei acreditar no dito popular “mulher de amigo meu, pra mim é homem” que meu tio bêbado tanto repetia. Mas depois de conhecer Dafne, precisei reformular o dito para “Mulher de amigo meu pra mim é homem, mas um homem muito cheiroso”.
Dafne era o tipo de mulher que me faria matar alguém, em troca de um simples toque de lábios. Eu era capaz de me suicidar por ela em troca de um beijo rápido. Eu faria qualquer coisa para tê-la nem que fosse somente uma vez.
...
Tudo começou no shopping center. Na mão esquerda, eu carregava pela alça plástica que saía de dentro da caixa, um aparador de grama Tramontina que comprei na “Constru & Cia” do shopping. A mão direita segurava um celular. Eu andava rápido, em dúvida se seria melhor tomar um sorvete ou comprar um milk shake. Tentei ultrapassar um casal de idosos que empurrava um carrinho de bebê e ao contornar a velha, bati com a caixa do aparador de grama na sacola de uma mulher.
Uma cópia de luxo do "Alice no país das maravilhas" saltou da sacola, e uma caixa de morangos deslizou pelo chão. Xinguei e franzi as sobrancelhas enquanto me agachava para pegar o livro do chão. A mulher pegou sua caixa de morangos. Erguemos a cabeça ao mesmo tempo e minha raiva deu lugar á mais pura vergonha. Eu acabara de atropelar a mulher mais linda do mundo com um aparador de grama.
Ela sorriu, agradeceu pelo livro, pediu desculpas, e recolheu tudo dentro da sacola.
-Desculpe novamente, estou com pressa! - E ela saiu andando na direção que estava antes de eu atropelá-la
Até então eu não tinha dito nada além dos xingamentos iniciais. Assisti por alguns segundos enquanto ela saia, ajeitando o cabelo.

8/04/2017

Triângulo

Ela desceu do carro que ofereceu-lhe carona e correu pela calçada, protegendo-se da garoa com uma pasta na cabeça. Tocou a campainha. O portão se abriu sozinho, ela entrou e correu até o elevador. O ex-marido Abel lhe esperava na porta do apartamento 37.
-Entre, por favor.
-Obrigada.
-Um chá? Café? Água? Vodca?
-Não, obrigada. Você sabe que eu não quero demorar.
-Pelo menos sente no sofá.
Ela preferiu ficar na poltrona. Ele no sofá ao lado. Debbie sabia que Abel tentaria flertar uma última vez antes de assinar os papéis do divórcio.
-Apenas assine, tudo bem?
Ele acendeu um cigarro.
Não, Debbie não aceitava um cigarro. E sim, estava tudo bem com Roberto, o rico e atual namorado de Debbie.
Por incrível que pareça, ele simplesmente se levantou e assinou os papéis.
-Antes de ir embora, quero te entregar uma coisa.
Abel se levantou e foi para seu quarto. Voltou logo em seguida, com uma das mãos fechadas. Parou na frente dela e estendeu a mão.
-Meu anel!
-Eu encontrei por baixo do pé da cama, enquanto fazia uma faxina. Não tenho ideia de como ele possa ter parado lá.
O anel fora o último presente que Debbie recebera do pai, minutos antes de sua morte. Mas o anel era um pouco largo, e Debbie precisava usá-lo no polegar. A primeira vez que aquele Anel caiu das mãos da garota, um rapaz o pegou e correu atrás dela, aos gritos, para devolver. Três anos depois eles estavam casados. No mesmo ano, o anel desaparecia misteriosamente enquanto transavam. Diziam que o anel sumira por ter terminado seu trabalho, de unir os dois. Dez anos depois, aos vinte e oito, Debbie levava os documentos do divórcio para ele assinar e o anel reaparecia.
-Acho que aceito um copo de água.
Quando ele voltou com o copo, ela tinha mudado de ideia. Preferia Vodca. Quarenta minutos depois do aparecimento do anel, estavam ambos nus na poltrona.
Engolindo o choro, Debbie pegou os papéis assinados, colocou dentro de sua pasta e saiu, indo embora num táxi.
-Taxista! Mudei de ideia. Pare ali na frente daquele bar.
Pagou o taxi, deixou o troco como gorjeta. Ela entrou no bar e pediu outro drink.
...
Quando Debbie foi embora, Abel pode chorar as lágrimas que tinha vergonha de chorar na frente dela. Trancou todas as portas, como era de costume, fechou as janelas, e colocou um disco tocar. O disco, assim como o anel de Debbie, fora um último presente de um pai agora morto.
Ne me quitte pas, Il faut oublier, Tout peut s'oublier Qui s'enfuit déjà”
Sentou se no sofà, ao lado dele, uma garrafa de vodca já aberta. Virou a garrafa e acendeu outro cigarro.Apagou.
Minutos depois, Abel acordou com um barulho estranho. O mesmo ruído de uma mangueira em alta pressão. Um cheiro desconfortável podia ser sentido. A casa estava toda escura.
O homem levantou-se, zonzo. Tentou abrir uma das janelas, mas algo impedia. Não tinha forças para isso. Seus olhos tentavam involuntariamente tremiam e ardiam. Abel andou pela casa, cambaleando, trombando nos móveis, e com cada vez mais dificuldade para respirar. Desconfiou que fosse um vazamento de gás, e tentou entrar na cozinha. Mas no cômodo estava tudo bem, apesar do cheiro forte já ter dominado toda a casa. A instalação de gás estava intacta.
Abel cambaleou de volta pra sala, onde o ruído era mais forte. Com fraqueza derrubou e empurrou móveis, mas não conseguia descobrir de onde vinha o gás que o intoxicava. Os músculos de Abel tremiam. Não podia ficar ali. Correu para o banheiro, e teve uma ideia.
Trancou a porta, e virou-se para a Janela.
Seus olhos ardiam
A visão estava mais turva do que o álcool poderia deixar.
Tudo girava muito rápido.
Era só abrir a Janela e respirar ar limpo.
Debruçado na pia, Abel vomitou. Vomitando, ficava sem ar. Quando tentava inspirar o ar pela boca, o vômito saia. Abel caiu ao chão, e o vômito escorreu pelo rosto. Ficou ali, imóvel, mas ainda consciente, até que uma última bolha de ar passou pelo vômito e produziu um estalo.
...
No apartamento ao lado do de Abel, uma velha surda assistia ao jornal. As letras brancas em fundo preto apareciam com um minuto de atraso, mostrando o que dizia o jornalista.
“O rico empresário Roberto Kirk foi encontrado morto em seu apartamento, ao lado do corpo de sua namorada Débora Nassar. Por enquanto a única pista da Polícia é um anel masculino encontrado por baixo da porta.”




4/23/2017

O triste fim de Leona Richter

Assim que entrou no bar, ela sentiu a tensão no olhar de todos os presentes. Uma mulher bonita não deveria entrar num bar de homens, ainda mais com um vestido vermelho curto e decotado. Não, não deveria. Ela sentou-se em uma mesa de dois lugares, colocou a bolsa no colo, e esperou.
Relutante, um garçom velho ofereceu-se:
-Pois não, madame.
-Uma dose de vodca, por favor. Pura e gelada, apenas.
Atrás da Madame Richter, três homens jogavam cartas e com a gritaria deles todos no bar sabiam que era García quem estava ganhando.
Mesmo que alguns estivessem muito bêbados, nenhum homem arriscava dirigir uma única palavra á bonitona da mesa 7, mas nenhum deles conseguia parar de olhar com desejo o corpo da mulher. Então o velho trouxe uma bandeja com um copo e uma garrafa.
Aquele lugar misturava todos os bares do mundo. O chão de madeira escura e a iluminação feita por lustres baratos. Os balcões limpos e três garçons usando de uniforme apenas um avental por cima de uma camisa. Haviam ali homens ricos bebendo coisas caras e comendo camarões fritos, ao lado de homens pobres comendo pão com cachaça. Entre eles, uma dama de vestido vermelho sentada sozinha.
Subitamente entra no recinto um homem conhecido por quase todos os outros do local. Cumprimenta com um aceno os que acidentalmente fazem contato visual com ele, então se senta na mesa onde outros três jogam as cartas.
-Hoffman! Chegou mais cedo hoje
-Sim García. Boa tarde. Ou já é Boa noite? Enfim. Separem as cartas e joguem o dinheiro na mesa que hoje eu acordei com o pressentimento de que vou ganhar.
-Então hoje você quer apostar?
-Se todos aceitarem, podemos jogar baixo.
A gritaria da mesa de cartas aumentou com a chegada de Hoffman. O homem parece inspirar a euforia nos colegas. Uma hora depois, Hoffman joga na mesa um Ás de espadas e recolhe cédulas e começa a contar.
-É, minha premonição estava certa. Acho que sobra bastante se eu pagar uma cerveja pra cada um.
Enquanto pedia as cervejas para um dos garçons, notou a dama que estava de costas para ele. Cochichou para Garcia:
-Quem é a bonitona?
-Não sei. É uma misteriosa que chegou pouco antes de você e começou a beber vodca sem falar nada. Primeiro pensei que ela estivesse esperando por alguém, mas deve estar no quarto ou quinto copo e ninguém chegou ainda. Ela talvez tenha levado um bolo.
-Nesse caso, Eu dou pra ela uma torta.
Hoffman levantou-se enquanto García deliciava-se rindo ao assistir a cena.
Hoffman sentou-se de frente para a Madame Richter, que vestia óculos escuros. Por segundos ficaram se encarando até o homem quebrar o gelo.
-Isso seria muito mais fácil sem os óculos.
-Não pretendo tirar eles, minhas olheiras estão terríveis.
-Algo tira seu sono? Madame...?
-Chame-me de Richter. Você é...?
-Hoffman. Se a senhorita não estiver esperando outra pessoa, posso te acompanhar com uma bebida?
-Claro que pode. Não espero ninguém.
Ela via nele uma beleza exótica entre os rapazes daquele lugar. Os olhos claros, a face redonda, a forma de falar e se vestir. Hoffman era um estrangeiro assim como Richter. Um estrangeiro bonito e charmoso.
Todos, incluindo os garçons, observavam incrédulos a coragem de Hoffman e invejavam sua sorte. Alguns pensam “Se eu soubesse que ela é uma vadia fácil, estaria no lugar desse cagado”.
...
-Preciso ir embora. Está tarde e eu já bebi bastante.
-Eu posso ir com você? Onde mora?
-Tudo bem, moro perto, de frente ao rio.
Assim, o recém formado casal seguiu conversando pelo curso de um rio, até que a mulher decidiu sentar-se em um banco, de frente para a água.
-Algumas pessoas dessa cidade vêm de muito longe, sabia?
-Hã? O que quer dizer com isso? – Exclama Hoffman
A Madame Richter tirou os óculos e encarou Hoffman em silêncio. O homem corou o rosto em vermelho e ficou imóvel.
-Como você me achou, mana.
-Isso não importa. Estou aqui e é o que importa.
-Minha irmã, eu te amei tanto.
-Eu também, irmã.
-Eu sou um homem agora.
-Sim, um homem charmoso que vive em Boemia.
-Eu sou feliz, pelo menos agora.
-Como consegue ser feliz tendo desgraçado nossa família, sapatão. Você renegou até seu sobrenome.
-Mas...
-Não adianta, você sempre será Leona Richter. Seu personagem Leon Hoffman nunca será real. Essa não é sua alma.
A Madame Richter tira de sua bolsa, um revolver pequeno e aponta para a cabeça da irmã.
-Adeus, irmãzinha querida.
-Apenas me diga o porque...
-Mamãe morreu de desgosto e Papai está doente desde o dia que você fugiu. Estou completamente sozinha por sua causa.
-Você não precisa...
Essas foram as últimas palavras de Leona, antes que a bala atravessasse seu crânio. O corpo magro que vestia uma camisa branca caiu ao chão, rolou por uma ladeira até chegar ao rio e ser levado pela correnteza.
Chorando, Madame Richter colocou uma peruca loira e um revolver dentro de sua bolsa, e seguiu por uma rua que margeia o rio.