-A
partir de agora você vai sozinho – Disse a mãe com o coração apertado. –
Preciso Voltar ao trabalho.
-Mas
mãe, esse...
-Não.
Você está grandinho demais para isso. Você consegue chegar em casa sozinho. Só
pegue o ônibus vinte e seis e desça na rua atrás da rua de casa.
A mãe
diz isso contra a própria vontade. O que ela realmente quer é levar o filho
para a casa segurando-o pela mão, deixa-lo no quarto assistindo á televisão e
colocar um cadeado no portão quando voltar para o trabalho. Mas ela também sabe
que não dá tempo, se fizer isso, chegará atrasada e será demitida. Além do
mais ela sabe que o filho Cauã agora é um homem crescido e apesar de todas as
deficiências mentais, ela pode morrer a qualquer momento e quando isso
acontecer o filho tem que saber se virar sozinho.
Quando
ela beija a testa do filho e dá as costas, sabe que não pode olhar pra trás.
Ele vai esperar que ela suma, virando a esquina e só então vai voltar para
casa.
“Se eu
olhar para trás, vou querer voltar. Na verdade, se eu olhar para trás eu vou
voltar”
Cauã
tira do bolso um boneco do homem de ferro com uns quinze centímetros de altura.
Ele aperta com força a cabeça do boneco e quanto mais longe a mãe está mais
forte ele aperta o boneco.
Quando a
mãe some do campo de visão, ele aperta um botão nas costas do brinquedo.
“Eu sou
o homem de ferro” – Diz a voz robotizada, produzida por alto-falantes de baixa
qualidade. Apesar da baixa qualidade o boneco é bonito.
Enquanto
anda para o ponto de ônibus, Cauã gosta de imaginar que é o homem de ferro e
na verdade está voando para a casa. Ou ainda melhor, está voando para Nova
York.
Enquanto
se aproxima do ponto de ônibus, Cauã diminui o passo. Há um velho de bigode
esperando o ônibus. Cauã não gosta de
ficar sozinho com estranhos. Agora ele anda tão lentamente, que parece um bicho
preguiça obeso. Se continuasse naquela velocidade, suas unhas do pé cresceriam
e chegariam ao ponto de ônibus antes dele.
Finalmente,
o garoto chega ao banco, e despeja seus cento e doze quilos no metal, que
reclama. Cauã só espera que o velho não queira conversar porque se não ele vai
ter que falar, e quando fala, se sente julgado. Principalmente com estranhos.
-Belo
bonequinho, hã!
Cauã não
percebeu que o velho falava do homem de ferro na mão dele.
-Quem é
esse daí? O super socialista? Pelas cores do uniforme deve ser.
Cauã
olha para o homem com o canto do olho.
-É para
um filho? Você tem filhos? Ou pode ser para um sobrinho também. Eu comprava
brinquedos para meus sobrinhos antes dos meus filhos nascerem. Agora todos os
três são homens formados.
-É o
homem de ferro – A voz de Cauã parece um sussurro fino. Ele fala como uma
garotinha gripada.
-Aham.
Acho que é desse dai que meus netos gostam. Você tem filhos?
-Não. O
boneco é meu.
O velho
parece espantado. É hilária e trágica a cena diante de seu bigode. Um jovem,
provavelmente com mais de vinte anos, a barba por fazer, gordo como um elefante
velho e que tem bonequinhos.
-E você
brinca com esse, homem de ferro?
-Ás
vezes. – A voz de Cauã soa cada vez mais leve, abaixando cada vez mais a
cabeça.
-E não
tem vergonha? Um homem do seu tamanho, brincando de bonequinhos. Você devia é
arranjar um emprego. Umas bucetas também.
Cauã
arregala os olhos. As únicas vezes que ouviu aquela palavra, bem, na verdade
ele não se recorda. Mas sabe que são palavrões.
-Eu fiz
minha carteira de trabalho hoje.
-Isso é
bom. No que você vai trabalhar?
-Eu vou
ser o homem de ferro.
O velho
dá uma gargalhada que pareceria contagiosa, se não fosse cruel.
-E eu
vou ser o Robocop – O velho continuou a rir. – Essa foi boa.
-Legal –
Respondeu Cauã. – Mas eu...
O velho
o interrompeu.
-Isso é
uma perdição. Um homem do seu tamanho, tanto em idade quanto em largura -Aqui o
velho abre um sorriso bruto- e querendo
ser uma criança. Se fosse na minha época você já estaria trabalhando em um
canavial. Levado umas boas surras, seria um homem de verdade.
-Mas eu
sou um homem, o homem de ferro.
-Homens
precisam de trabalho, esportes, cerveja e buceta. Carros também, para quem
pode.
O ônibus
26 passa e para o azar de Cauã, o velho também entra nele.
-Sabe,
acho que o grande problema é que os garotos da sua idade tem computadores. Acessam a pornografia o dia
inteiro. Na minha época era preciso gastar dinheiro e tempo para conseguir ver
umas tetinhas. Vocês só vivem de saco vazio, e por isso tem menos testosterona
que as mulheres. Não é á toa que elas estão preferindo os coroas. – E deu uma
risada alta.
Uma
passageira do ônibus parecia incomodada com o monólogo do velho. Cauã está
quieto, e continua assim, porque sabe que ele mesmo as vezes massageia o pipi.
Também sabe que isso é errado, porque a mãe disse para ele não fazer mais isso.
O padre também disse para Cauã não se masturbar.
“Mas é
tão bom”
De
qualquer forma, o garoto não tem muito discernimento sobre suas ações. Não
prestou muita atenção ao que o velho falava sobre sexo e álcool. Algo sobre os
homens que não sabem fazer o reboco da casa serem verdadeiras bichas.
“Talvez
eu seja uma verdadeira bicha. Não sei fazer reboco”
Outra
coisa que Cauã não sabe, é o significado de verdadeiras
bichas.
-Vamos,
fale alguma coisa! O gato comeu sua língua?
-Eu sou
uma verdadeira bicha.
O velho
irritado, olha com pavor, nojo e ódio ao mesmo tempo para o garoto e começa a
falar bem alto:
-Cala a
boca moleque. Você não sabe o que fala. Você é um gordão autista. O que você
merece é levar uma surra, viadinho.
Cauã não
sabe o que é bicha, mas sabe o que é viadinho. Ele já foi chamado de gordo
autista antes e isso machuca bastante o coração engordurado que ele ás vezes
sente em algum lugar no meio de toda a banha.
-Você
vai chorar? O bebezinho está chorando gente. O viadinho chora com um
bonequinho. Você enfia esse bonequinho no cu de vez em quando?
Algumas
lágrimas escorrem pelas bochechas inchadas do garoto. Por sorte, está perto de
casa e vai descer do ônibus.
É uma
pena que o velho o segue.
-Está
bem. Eu estou morrendo e ainda não fiz minha boa ação do dia, preciso muito ir
pro céu, encontrar minha falecida esposa. Vamos, vou te pagar uma cerveja.
-Não.
-Não tenha
medo. Eu pago, ali no bar do Raimundo. Ou você quer continuar sendo um gordo
viadinho?
Cauã não
quer continuar sendo um gordo viadinho. Ele se lembra de um comercial na TV. Um
homem estava triste no escritório. Ele gira na cadeira e surge um bar. Ele pega
uma lata de cerveja e toma um gole. Imediatamente ele fica feliz e surgem
outras pessoas contentes.
Talvez se tomasse uma cerveja, ele seria bem feliz e não mais um gordo viadinho.
No bar,
o garoto tenta se sentar numa cadeira de plástico.
-Não
sente aí -Grita o velho – Você vai quebrar a cadeira. – Vou trazer algo mais
resistente para você.
Humilhado,
o garoto está novamente de cabeça baixa, e novas lágrimas escorrem pelo rosto.
O velho
tenta não dizer nada dessa vez, mas não se aguenta e resmunga “bicha chorona”
enquanto sai. Cauã ouviu e agora está ainda mais triste.
-Aqui
está, te trouxe um banco de metal.
O velho
coloca duas cervejas sobre a mesa.
-Tome.
-Cauã
ainda está travado, mas lentamente cria coragem e segura a garrafa.
“Tem
gosto de xixi” ele pensa. Depois de três goles ele ainda não está feliz como no
comercial. As pessoas em volta dele não parecem felizes. São velhos barrigudos
de braços finos. Alguns gritam no jogo de truco, outros dormem, mas nenhum
parece feliz como no comercial.
Talvez
precisa beber mais um pouco. Ou talvez precisa de uma gravata para que a
cerveja me deixe feliz.
Como não
tem uma gravata, Cauã bebe mais enquanto o velho discursa sobre como em sua
época os homens gostavam de boxe. “Nós brigávamos no bar, só pela diversão. Nós
corríamos de carro e mesmo quando cansado, eu chegava em casa e comia minha
esposa. Ás vezes eu precisava aguentar as duas amantes e ela no mesmo dia, meu
pau quase explodia, e no outro dia eu dizia estar com dor de cabeça. Mas esses
dias eram os melhores.”
-Mas os
homens da sua geração são iguais a você. Gordos, idiotas e só gostam de coisa
de criança.
Cauã,
agora bêbado, volta a chorar. Já foi chamado de idiota antes e sabe que isso é
ruim
-Olhem
para mim eu sou um homem de ferro. – Agora o velho não fala alto, mas grita.
-Aposto
que o seu pinto também não cresceu, como você. Aliás, você ainda enxerga ele? –
E o velho cai na gargalhada.
“O que
Tony Stark faria?”. Cauã não aguenta mais. Não é só tristeza e vontade de sair
correndo para longe dali. Cauã quer o colo da mãe. Mas ela está longe.
E a natureza tem uma regra que rege todos os seres vivos. Se você não pode correr, finja de morto ou ataque.
“Tony
Stark vestiria a armadura e mataria o vilão” "Uma luta, sim, como os homens de antigamente. Não vou mais ser uma bicha chorona. Vou ser o Tony Stark"
Mesmo
que a gordura debilite seus movimentos, Cauã ainda é, pelo menos, quarenta anos
mais jovem que o velho bigodudo que o provocara. Um soco, depois um chute.
Depois Cauã bate com a garrafa na cabeça do velho.
Alguém
grita “OU” lá do fundo do bar, mas Cauã não ouve. O velho também não.
Com
dificuldades para se movimentar, o velho cospe o último dente que sobrou em sua
boca, no meio de uma poça de sangue.
-Seu
viadinho! – É a última frase do homem.
Cauã
ainda está triste e humilhado.
A mãe de
Cauã também vai ficar triste e humilhada quando descobrir o que aconteceu.
Cauã
vai ser muito mais humilhado na cadeia, mas ninguém sabe disso ainda. E o homem
de ferro não virá para salvá-lo.