A voz dele nunca soou tão fria, chegou me dar arrepios. “Cala
a boca, Bianca”, papai disse. Mas eu amo ele mesmo assim. Meu pai é bem bravo,
mas não é sempre. As vezes ele me dá presente, sempre traz um doce quando vai
ao mercado. Ele só não gosta muito de quando eu tento brincar com ele, mas ele
vive dando sorrisos quando eu mostro meus desenhos pra ele. Ontem eu desenhei
um homem aranha, conforme vi no celular, e ele riu bastante. “Você quer ir no
cinema, não é?” ele disse. Respondi que sim.
Agora estamos no estacionamento do shopping center, está de
noite. Acho que é a primeira vez que eu saio com papai a noite, ele vai me levar
no cinema assistir o homem aranha no aranhaverso porque ele sabe que eu gosto
de super heróis e vou fazer o meu aniversário de nove anos semana que vem. Já
pedi decoração da mulher maravilha, acho ela linda.
Ele olhava o celular toda hora, me segurando pela outra mão.
Ele perguntou se eu queria comer alguma coisa antes, e a gente foi no Burguer
King e eu peguei de brinde um copo sem graça. Eu queria o boneco da capitã Marvel
que tinha no Mc donalds mas meu pai fala que o lanche de lá é feito com minhoca
e dá dor de barriga. Daí ele come o lanche vegetariano do Burguer King e chega
em casa com dor de barriga mesmo assim.
Depois do lanche eu pedi um sorvete, mas ele falou que a
gente compraria quando fosse embora. Fomos no cinema comprar o ingresso, e o
papai mostrou minha carteirinha da escola para pagar menos, ele sempre faz isso
mesmo. Daí ele queria ir no banheiro, mas o do cinema não podia entrar porque
só quando fosse ver o filme. Daí a gente foi no banheiro do outro lado do
shopping.
Não faz mal, na verdade eu gosto de olhar as vitrines e faltava
bastante tempo pra começar o filme. Meu pai estava mais quieto que o normal. Para
tudo que eu falava ele repetia “seu aniversário está chegando, se eu comprar
algo hoje não vou ter dinheiro pro seu presente”. Ele disse que ele e mamãe
estavam planejando uma surpresa, que eu não poderia saber o que é, mas que por
isso não podia comprar nada. “não vou te deixar sozinha aqui, você entra no
banheiro comigo”, ele disse. “Não vou te deixar sozinha no banheiro masculino,
você entra na cabine e fica de costas. Não faz mal também, é bem ruim ficar
sozinha no banheiro masculino então eu entrei com meu pai na cabine, ele ficou
de costas pra fazer xixi, mas também não faz mal porque eu já tomei banho com
papai. Nada de novo sob o sol.
Nós fomos assistir o filme. O Miles Morales é muito legal, ele
tem um cabelo feito o meu e namora a Gwen Stacy que também tem poder de aranha.
Aparece no filme o pai dele que é muito parecido com o meu pai e o porco
aranha. O porco aranha é muito engraçado, ele é um desenho 2d num filme de 3d. Eu fiquei imaginando que eu
era parte do filme, jogando teia pela cidade. Numa cena em que ele estava em
cima de um prédio, meu pai falou “olha, parece a visão da nossa sacada” e era
bem parecido mesmo. A Gwen Stacy do filme é bonita igual uma menina da minha
escola.
Ai, quando o filme acabou eu quis chorar, mas segurei. Meu
pai parecia estar entediado no começo, mas ele se mexeu bastante nas cenas de
ação do final, chegou parecer que ele
ficou mais nervoso que eu pra ver o que acontecia com o Miles Morales. Acho que
ele se interessou quando viu o pai do Miles.
“Sabe Bia, eu acho que também sou um pai de super-herói”. Eu
não entendi, mas ele me explicou que me amava e que eu ia ser muito boa quando
crescesse. Eu tirei uma foto com o cartaz do filme. “Finge que você é a Gwen!”,
ele disse, e eu fiz a mão de teia pra foto. Fomos tomar sorvete.
Agora que eu parei pra pensar, porque meu pai tomava o
sorvete dele em silêncio. Acho que meu pai não gostava daquele shopping porque
ele já trabalhou lá como segurança, e daí demitiram ele. O cinema ficava no
terceiro andar, eu gosto de ficar olhando lá pra baixo. Papai quis ir no
banheiro de novo. “já sabe né?” ele disse. Entrei com ele, mas dessa vez ele
não ficou de costas. Ele se sentou no vaso, ainda com as calças, me abraçou e
me beijou na boca.
Quando meu pai parou de me beijar, ele disse que conhecia
algo legal naquele shopping. Ele ia
falando “acho que todo mundo pode ser um herói se acreditar bastante”, e também
sobre como eu tinha potencial e como ele parecia com o pai do Miles Morales. Eu
falei que queria poder ter os poderes do aranha, e ele falou que eu podia. Nós
chegamos no canto do shopping que dava pra ver tudo. Lá de cima eu enxergava
todas as lojas, as pessoas. Meu pai me pegou no colo.
Do colo dele eu ficava mais alta para ver as coisas. Me
imaginei com os poderes de aranha, balançando minha teia entre os andares,
puxando com a teia o sorvete de um menino branco no segundo andar. Imaginei tão
forte que eu enxergava as teias e dava cambalhotas no ar, de um lado pro outro.
A música do filme tocava na minha cabeça. Quando chegar em
casa eu vou tentar descobrir o nome. Eu fazia uma cama elástica com teia e
deixava meu corpo cair, a teia descia até quase no chão, e me jogava pra cima
de novo. Eu chegava perto do teto do shopping, e caía de novo. Na terceira
queda, cheguei a sentir o ventinho batendo no meu rosto. Foi nessa hora que
levei um susto.
Quando olhei para baixo, para a cama elástica de teia, ela
sumiu. Lá em baixo havia uma menina, deitada, estirada, vestindo uma roupa como
a minha, mas toda lambusada de sangue. Quando vi, me desesperei por alguns
segundos, parada no ar. Logo passou, e eu percebi que estava flutuando. Meus
poderes não eram de aranha, eu podia voar como a capitã Marvel. Eu passei a dar
piruetas, e subi até o terceiro andar. Lá eu vi meu pai, correndo, com o rosto
sério. Quando ele fez a curva da loja de roupas eu fui atrás dele dizendo “papai,
olhe pra mim, eu sei voar”. Ele não me ouvia.
Quando meu pai viu um outro homem, um velhinho de bigode, ele
se aproximou e colocou as mãos no rosto,
chorando. “Por favor, minha filha se jogou lá em baixo por causa do filme do
homem aranha”. Eu continuei voando, até
o teto, mas papai não me ouvia chamar. O velhinho disse que procuraria por
ajuda, e quando saiu, meu pai parou de chorar.