1/25/2018

Homem de Ferro

-A partir de agora você vai sozinho – Disse a mãe com o coração apertado. – Preciso Voltar ao trabalho.
-Mas mãe, esse...
-Não. Você está grandinho demais para isso. Você consegue chegar em casa sozinho. Só pegue o ônibus vinte e seis e desça na rua atrás da rua de casa.
A mãe diz isso contra a própria vontade. O que ela realmente quer é levar o filho para a casa segurando-o pela mão, deixa-lo no quarto assistindo á televisão e colocar um cadeado no portão quando voltar para o trabalho. Mas ela também sabe que não dá tempo, se fizer isso, chegará atrasada e será demitida. Além do mais ela sabe que o filho Cauã agora é um homem crescido e apesar de todas as deficiências mentais, ela pode morrer a qualquer momento e quando isso acontecer o filho tem que saber se virar sozinho.
Quando ela beija a testa do filho e dá as costas, sabe que não pode olhar pra trás. Ele vai esperar que ela suma, virando a esquina e só então vai voltar para casa.
“Se eu olhar para trás, vou querer voltar. Na verdade, se eu olhar para trás eu vou voltar”
Cauã tira do bolso um boneco do homem de ferro com uns quinze centímetros de altura. Ele aperta com força a cabeça do boneco e quanto mais longe a mãe está mais forte ele aperta o boneco.
Quando a mãe some do campo de visão, ele aperta um botão nas costas do brinquedo.
“Eu sou o homem de ferro” – Diz a voz robotizada, produzida por alto-falantes de baixa qualidade. Apesar da baixa qualidade o boneco é bonito.
Enquanto anda para o ponto de ônibus, Cauã gosta de imaginar que é o homem de ferro e na verdade está voando para a casa. Ou ainda melhor, está voando para Nova York.
Enquanto se aproxima do ponto de ônibus, Cauã diminui o passo. Há um velho de bigode esperando o ônibus. Cauã  não gosta de ficar sozinho com estranhos. Agora ele anda tão lentamente, que parece um bicho preguiça obeso. Se continuasse naquela velocidade, suas unhas do pé cresceriam e chegariam ao ponto de ônibus antes dele.
Finalmente, o garoto chega ao banco, e despeja seus cento e doze quilos no metal, que reclama. Cauã só espera que o velho não queira conversar porque se não ele vai ter que falar, e quando fala, se sente julgado. Principalmente com estranhos.
-Belo bonequinho, hã!
Cauã não percebeu que o velho falava do homem de ferro na mão dele.
-Quem é esse daí? O super socialista? Pelas cores do uniforme deve ser.
Cauã olha para o homem com o canto do olho.
-É para um filho? Você tem filhos? Ou pode ser para um sobrinho também. Eu comprava brinquedos para meus sobrinhos antes dos meus filhos nascerem. Agora todos os três são homens formados.
-É o homem de ferro – A voz de Cauã parece um sussurro fino. Ele fala como uma garotinha gripada.
-Aham. Acho que é desse dai que meus netos gostam. Você tem filhos?
-Não. O boneco é meu.
O velho parece espantado. É hilária e trágica a cena diante de seu bigode. Um jovem, provavelmente com mais de vinte anos, a barba por fazer, gordo como um elefante velho e que tem bonequinhos.
-E você brinca com esse, homem de ferro?
-Ás vezes. – A voz de Cauã soa cada vez mais leve, abaixando cada vez mais a cabeça.
-E não tem vergonha? Um homem do seu tamanho, brincando de bonequinhos. Você devia é arranjar um emprego. Umas bucetas também.
Cauã arregala os olhos. As únicas vezes que ouviu aquela palavra, bem, na verdade ele não se recorda. Mas sabe que são palavrões.
-Eu fiz minha carteira de trabalho hoje.
-Isso é bom. No que você vai trabalhar?
-Eu vou ser o homem de ferro.
O velho dá uma gargalhada que pareceria contagiosa, se não fosse cruel.
-E eu vou ser o Robocop – O velho continuou a rir. – Essa foi boa.
-Legal – Respondeu Cauã. – Mas eu...
O velho o interrompeu.
-Isso é uma perdição. Um homem do seu tamanho, tanto em idade quanto em largura -Aqui o velho abre um sorriso bruto-  e querendo ser uma criança. Se fosse na minha época você já estaria trabalhando em um canavial. Levado umas boas surras, seria um homem de verdade.
-Mas eu sou um homem, o homem de ferro.
-Homens precisam de trabalho, esportes, cerveja e buceta. Carros também, para quem pode.
O ônibus 26 passa e para o azar de Cauã, o velho também entra nele.
-Sabe, acho que o grande problema é que os garotos da sua idade  tem computadores. Acessam a pornografia o dia inteiro. Na minha época era preciso gastar dinheiro e tempo para conseguir ver umas tetinhas. Vocês só vivem de saco vazio, e por isso tem menos testosterona que as mulheres. Não é á toa que elas estão preferindo os coroas. – E deu uma risada alta.
Uma passageira do ônibus parecia incomodada com o monólogo do velho. Cauã está quieto, e continua assim, porque sabe que ele mesmo as vezes massageia o pipi. Também sabe que isso é errado, porque a mãe disse para ele não fazer mais isso. O padre também disse para Cauã não se masturbar.
“Mas é tão bom”
De qualquer forma, o garoto não tem muito discernimento sobre suas ações. Não prestou muita atenção ao que o velho falava sobre sexo e álcool. Algo sobre os homens que não sabem fazer o reboco da casa serem verdadeiras bichas.
“Talvez eu seja uma verdadeira bicha. Não sei fazer reboco”
Outra coisa que Cauã não sabe, é o significado de verdadeiras bichas.
-Vamos, fale alguma coisa! O gato comeu sua língua?
-Eu sou uma verdadeira bicha.
O velho irritado, olha com pavor, nojo e ódio ao mesmo tempo para o garoto e começa a falar bem alto:
-Cala a boca moleque. Você não sabe o que fala. Você é um gordão autista. O que você merece é levar uma surra, viadinho.
Cauã não sabe o que é bicha, mas sabe o que é viadinho. Ele já foi chamado de gordo autista antes e isso machuca bastante o coração engordurado que ele ás vezes sente em algum lugar no meio de toda a banha.
-Você vai chorar? O bebezinho está chorando gente. O viadinho chora com um bonequinho. Você enfia esse bonequinho no cu de vez em quando?
Algumas lágrimas escorrem pelas bochechas inchadas do garoto. Por sorte, está perto de casa e vai descer do ônibus.
É uma pena que o velho o segue.
-Está bem. Eu estou morrendo e ainda não fiz minha boa ação do dia, preciso muito ir pro céu, encontrar minha falecida esposa. Vamos, vou te pagar uma cerveja.
-Não.
-Não tenha medo. Eu pago, ali no bar do Raimundo. Ou você quer continuar sendo um gordo viadinho?
Cauã não quer continuar sendo um gordo viadinho. Ele se lembra de um comercial na TV. Um homem estava triste no escritório. Ele gira na cadeira e surge um bar. Ele pega uma lata de cerveja e toma um gole. Imediatamente ele fica feliz e surgem outras pessoas contentes.
Talvez se tomasse uma cerveja, ele seria bem feliz e não mais um gordo viadinho.
No bar, o garoto tenta se sentar numa cadeira de plástico.
-Não sente aí -Grita o velho – Você vai quebrar a cadeira. – Vou trazer algo mais resistente para você.
Humilhado, o garoto está novamente de cabeça baixa, e novas lágrimas escorrem pelo rosto.
O velho tenta não dizer nada dessa vez, mas não se aguenta e resmunga “bicha chorona” enquanto sai. Cauã ouviu e agora está ainda mais triste.
-Aqui está, te trouxe um banco de metal.
O velho coloca duas cervejas sobre a mesa.
-Tome.
-Cauã ainda está travado, mas lentamente cria coragem e segura a garrafa.
“Tem gosto de xixi” ele pensa. Depois de três goles ele ainda não está feliz como no comercial. As pessoas em volta dele não parecem felizes. São velhos barrigudos de braços finos. Alguns gritam no jogo de truco, outros dormem, mas nenhum parece feliz como no comercial.
Talvez precisa beber mais um pouco. Ou talvez precisa de uma gravata para que a cerveja me deixe feliz.
Como não tem uma gravata, Cauã bebe mais enquanto o velho discursa sobre como em sua época os homens gostavam de boxe. “Nós brigávamos no bar, só pela diversão. Nós corríamos de carro e mesmo quando cansado, eu chegava em casa e comia minha esposa. Ás vezes eu precisava aguentar as duas amantes e ela no mesmo dia, meu pau quase explodia, e no outro dia eu dizia estar com dor de cabeça. Mas esses dias eram os melhores.”
-Mas os homens da sua geração são iguais a você. Gordos, idiotas e só gostam de coisa de criança.
Cauã, agora bêbado, volta a chorar. Já foi chamado de idiota antes e sabe que isso é ruim
-Olhem para mim eu sou um homem de ferro. – Agora o velho não fala alto, mas grita.
-Aposto que o seu pinto também não cresceu, como você. Aliás, você ainda enxerga ele? – E o velho cai na gargalhada.
“O que Tony Stark faria?”. Cauã não aguenta mais. Não é só tristeza e vontade de sair correndo para longe dali. Cauã quer o colo da mãe. Mas ela está longe.
E a natureza tem uma regra que rege todos os seres vivos.  Se você não pode correr, finja de morto ou ataque.
“Tony Stark vestiria a armadura e mataria o vilão” "Uma luta, sim, como os homens de antigamente. Não vou mais ser uma bicha chorona. Vou ser o Tony Stark"
Mesmo que a gordura debilite seus movimentos, Cauã ainda é, pelo menos, quarenta anos mais jovem que o velho bigodudo que o provocara. Um soco, depois um chute. Depois Cauã bate com a garrafa na cabeça do velho.
Alguém grita “OU” lá do fundo do bar, mas Cauã não ouve. O velho também não.
Com dificuldades para se movimentar, o velho cospe o último dente que sobrou em sua boca, no meio de uma poça de sangue.
-Seu viadinho! – É a última frase do homem.
Cauã ainda está triste e humilhado.
A mãe de Cauã também vai ficar triste e humilhada quando descobrir o que aconteceu.
Cauã vai ser muito mais humilhado na cadeia, mas ninguém sabe disso ainda. E o homem de ferro não virá para salvá-lo.