Crônicas de uma escola muito louca
"Quando acordei, prometi que seria um dia bom, mas meu Peugeot 207 decidiu que não. Além do rádio que não lia mais pen drive e só sintonizava na estação gospel (pelo menos era a única da cidade que não tocava ‘A Voz do Brasil’), tínhamos também um fusível queimado no ar-condicionado.
Me encaminhava à escola, já imaginando o caos que me aguardava, quando uma fumaça misteriosa começou a sair do capô. Parei em qualquer lugar – literalmente, qualquer lugar – e descobri que o vazamento de água era, na verdade, o reservatório do radiador decidindo que já tinha sofrido o suficiente. Chamei um Uber.
Cheguei vinte minutos atrasado, pois o motorista insistia em dirigir devagar enquanto contava a história da mãe, que tinha um carro igual ao meu. ‘Explodiu com ela dentro’, ele disse, como se isso fosse um fato casual, do tipo ‘hoje o dia está bonito’. Eu pensava: ‘Deus, se eu tivesse um filho desses, eu também me explodiria.’
Na sala de aula, a turma do 1°C me aguardava. Quer dizer, uma pequena parte dela.
‘Bom dia, meus queridos’, disse eu, ainda sem fôlego.
Brendo, sempre o primeiro a falar: ‘Aê, fessor, se demorasse mais a tia do portão não te deixava entrar, igual ela faz comigo. Vamo assistir filme hoje?’
‘Não, hoje vamos usar a imaginação’, respondi.
‘Imaginar cansa, o filme é mais fácil’, retrucou outro.
‘Jogar bola também cansa, e você mata aula pra ficar na quadra, Luís’, rebati, tentando manter o controle da situação.
‘Chega, gente’, tentei interromper. ‘Por coincidência, estávamos estudando a lei dos gases ideais. E adivinhem por que me atrasei hoje?’
‘Porque o carro do senhor é uma sucata’, disparou um aluno. ‘Eu vi o senhor parado na avenida, perto de um matagal, de cima da caminhonete do meu pai.’
‘Tá, pode ser’, admiti. ‘Mas o que aconteceu foi um superaquecimento. Queimou um fusível da parte de refrigeração, que eu não consertei. A água que resfria o radiador vazou, e isso é uma transformação ISO…’ – parei, esperando que alguém completasse.
Silêncio.
Daniel, sempre o mais curioso, perguntou: ‘Então é nessa hora que a gente usa a lei dos gases na vida, professor?’
Antes que eu respondesse, outro aluno já se intrometeu: ‘Você usou a lei dos gases quando soltou aquela bufa na sala. Ainda bem que a gente não tem ar-condicionado, senão morreríamos como na câmara de gás que o professor Debrino falou que existia na Segunda Guerra Mundial.’
Eu só consegui pensar: ‘Pelo menos alguém prestou atenção na aula do Debrino.’
Saí da aula e corri para a sala dos professores. Uma reunião com a coordenação pedagógica estava prestes a começar. Dona Maristela, a coordenadora e personificação da burocracia escolar, tentava ligar um projetor de 2008 para falar sobre tecnologia na educação. O aparelho tossia e cuspia luzes como se estivesse no seu leito de morte, mas ela insistia, como se a persistência fosse a chave para a inovação.
A reunião começou com ela falando sobre ‘metodologias ativas’ e ‘aprendizagem significativa’. Eu só conseguia pensar no Brendo e no filme que ele tanto queria assistir. Que filme seria? Talvez eu não conhecesse meus alunos tão bem quanto imaginava.
Me levantei para pegar um copo descartável de café, já que a reunião não andava. Eu não tinha uma xícara só minha com o escudo da escola e meu nome. Usar o de outra escola era considerado uma ofensa pessoal pela diretora. Mas não havia café. Dona Josefina, a merendeira e mãe do motorista do Uber que me levara até a escola, havia falecido naquela manhã. Seu Peugeot explodira com ela dentro.
Depois de muito apertar a garrafa, olhei para o copo descartável com três gotas do café de ontem e pensei: ‘O café tá caro mesmo.’"
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