Processo Seletivo no Inferno

Recentemente, morri duas vezes.

Em uma destas, eu estava no purgatório, aguardando minha vez de ser chamado. Era como uma sala de espera, com paredes cinzas infinitas, chão de carpete e cadeiras de plástico como as de clínica de convênio. Olhei para minhas mãos, onde encontrei um papel de senha com o número 12. Quando finalmente encontrei o visor de senha, marcava -639. Apitou e exibiu o número: -638.

Não há muito o que se fazer. Eu não podia dormir e não sabia onde estava, ainda. Por sorte, uma pequena portinhola se abriu, em uma parede cinquenta metros à frente, de lá vi sair um ser com pés de cabra, chifres de boi e olhos de peixe.

— Senhor Henrique Cruz!

Me levantei e corri em direção. Ele apenas sinalizou que eu entrasse. Parecia um escritório. Me ofereceu uma cadeira para sentar e posicionou-se do outro lado da mesa.

— Pois bem! O senhor morreu — disse ele com voz grave. — Antes de prosseguirmos, vou fazer uma pequena entrevista para mapear comportamentos que ajudarão os juízes a decidirem se você desce ou sobe, tudo bem por você?

— Eu tenho outra opção? — respondi.

— Não! Pois bem. As primeiras perguntas vão investigar se o senhor foi luxurioso. Em que tipo de moradia residia em vida?

— Um apartamento MRV.

— Comprado à vista?

— No momento da partida, eu estava pagando a décima segunda parcela do financiamento de trinta anos.

— Se fudeu. Qual era sua profissão?

— Professor e coordenador de escola!

— Por curiosidade, qual disciplina?

— Física. Me permite uma pergunta também? Você é o diabo?

— Você se refere a Lúcifer? Não, não. Quem me dera. Pense no inferno como um banco. Lúcifer é o CEO e eu sou apenas um estagiário.

— Você tem nome?

Com um estalar de dedos, em suas vestimentas fez surgir uma espécie de crachá dourado. Em tinta preta, o nome “Midelcul”. Ele parecia entediado com aquela entrevista.

— Seu nome seria mal interpretado no idioma que eu falava lá em cima.

— É por isso que eu não atendo brasileiros; permita-me continuar. Casado?

— Não.

— Bebia? Fumava?

— Bebia, não fumava.

— Sua ficha diz o contrário.

— Eu só fumava com ela, na presença dela, ou sozinho pensando nela.

— Estava apaixonado então?

— Eu tinha acabado de desapaixonar.

— Qual carro o senhor tinha?

— Um Peugeot 207!

— Meu Deus! — exclamou o diabo. — Tem certeza que está no lugar certo? Qualquer pecado cometido, com essa vida, já teria sido pago. Deixa-me verificar uma coisa.

Midelcul tirou do bolso um celular, um Samsung S3, e fez uma ligação.

— Alô, Mammon, você pode ver a vida financeira de um cara aqui? Sim, isso.

Do outro lado da linha, eu conseguia ouvir, após soprar a fumaça de um cigarro, uma voz estridente dizendo:

— Trinta anos de financiamento? Isso já não é ganância, é desespero. Tenta falar com Belial, parece mais do setor dele.

Após a segunda tentativa, o telefone atendeu novamente. O demônio do outro lado da linha apenas dizia:

— Não, eu não mandei nada pra esse cara não. Taurinos eu deixo descansar até a próxima vida! Talvez tenha sido preguiça, fala com Baphomet.

O terceiro telefonema atendeu de primeira.

— Setor de Marketing do Inferno, com quem falo?

O diabrete explicou a situação:

— Sabe, é do RH! Eu tô com um cara aqui, e, bom, não tô achando uma condenação pra ele, não mandaram nada. Vê se tem algo aí no nome de Henrique.

Depois de algum silêncio, a resposta foi:

— Não tem nada não. Fala pra ele que aqui tem Wi-Fi grátis, que talvez ele aceite ir por livre e espontânea vontade. Se não, oferece comida, bebida e umas virgens. Sempre cola com esses caras, não vai ser de verdade mesmo.

Mas, para minha sorte, dava para ouvir tudo. 

O diabrete em minha frente estava para fazer a próxima pergunta, quando seu celular tocou. Ele ouviu atentamente, balançando a cabeça. Fixados em mim, seus olhos não se moviam. Ele apenas se levantou e abriu a porta, levantando um vento quente que soprava em minha direção. Outro ser, mais parecido com um homem, entrou por ela, e Midelcul saiu.

— Prazer, Lúcifer. Eu fiquei tão contente quando fiquei sabendo que você estava aqui que vim vê-lo pessoalmente. Na verdade, fui eu que mandei te chamar. Você foi aprovado em um processo seletivo do inferno. — Lúcifer parecia um homem jovem e bonito.

— Eu fico lisonjeado, mas não me lembro de ter me inscrito em nada. — Respondi apertando sua mão.

— Na verdade sim, você se inscreveu. Estava em um documento que você assinou com um advogado que eu mandei, você achou que ia receber seu FGTS. Já vi seu orgulho na resposta anterior e, no caso, sua ganância te levou a se inscrever. Olhe o lado bom, você é o melhor candidato que eu tinha para essa vaga.

— Justo eu? Não fui tão mau assim em vida!

— Mas esta vida te deu a experiência que eu precisava. Você não foi professor? Te garanto que as almas daqui são mais obedientes que adolescentes. E ainda, aqui você vai poder bater nelas sem ninguém dizer nada. Preciso de um novo gerente. Você não vai fazer mais do que Midelcul fazia, sabe o que acontece? A gente precisou colocar um pouco de burocracia aqui, tinha muita gente ruim indo para o céu e gente boa vindo para o inferno. Não que eu achasse isso ruim, mas estávamos com dificuldade para encontrar bons funcionários.

— Sério? Mas lá na terra tem tanta gente mais qualificada.

— Exatamente. São pessoas que já são malvadas há muito tempo. Aqui, eles costumam se entediar e trabalhar mal. Eu quero gente fresca. Eu sei de todas as respostas, mas me deixe te mostrar o quão qualificado você é? Me diga sua música predileta.

— Take on me, do A-ha.

— Não, essa foi a que você dizia pra todo mundo no Tinder, tô perguntando a favorita de todas.

— Sônia, do Léo Jaime.

— Tá vendo, seus pensamentos nunca foram puros. Quantas vezes você transou?

— Eu realmente não quero dizer…

— Viu? Você também sabe a resposta.

— Nem foram muitas.

— Por isso mesmo, foram suficientes, só pra você cair aqui. Me diz, quantas horas de vida você desperdiçou na frente de um computador? Acha que Deus vai te aceitar lá com tudo isso? Não é melhor ter um bom cargo por aqui?

— Sabe, eu não tava pronto pra morrer ainda e… — Satanás me interrompeu.

— Agora é tarde. Eu preciso de você, você precisa de mim… — O diabo sorriu, e botou para fora uma língua bifurcada que balançava de um lado para o outro. Então mudou de aparência, ao invés de humano, ficou semelhante a um réptil humanoide.

— Sabe, se não for muito incômodo, eu preferiria que você tivesse tomado a forma de Al Pacino.

— Não posso, tem direitos de imagem.

— Ah, que pena. Não pode nem ser algo mais caricato? Como o Hellboy?

— Nunca mais diga isso — respondeu ele com uma voz que fez tremer todos os objetos da sala. Eu só não defequei nas calças porque espíritos não têm intestino. — E não tente me irritar, isso é muito fácil e eu mando você para o pior setor do inferno para ser torturado.

— Não, eu não quero isso. Mas como que é?

— Bom, estamos tentando nos atualizar um pouco. Tem uma sala onde você fica de pé de costas para uma parede.

— Na terra tem torturas piores.

— Mas você está completamente nu na frente da sua cidade inteira, por toda eternidade.

— E não acostuma?

— Até acostuma, daí a gente joga mel quente por sobre a pessoa, começa a tocar Anitta e solta um monte de formiga.

— Tá, tô começando a entender.

— E eu estou te propondo ser o cara que dá risada da nudez dos outros e joga o mel fervente. Vai aceitar ou não?

— Sabe, é que…

— Quando o Léo Jaime vier, eu mando ele para o seu setor.

Eu estava quase aceitando. Mas uma luz se abriu sobre o teto. Colocando a mão por sobre a sobrancelha, eu e o diabo olhamos para cima. Lá em cima, em um disco de luz, cercado por uma bola de feno, Keanu Reeves falava: “Acorda da Matrix, cara”. E alguma força misteriosa, como se a gravidade estivesse ligada ao contrário, me puxava para cima. Enquanto subia, somente vi o diabo tomar a forma de Al Pacino, enquanto dizia com a língua para fora: “Aguardo a próxima visita”.

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